Acabamos de receber a notícia da morte de uma vendedora que foi esfaqueada na loja onde trabalhava por um homem que não aparentava sinal de potencial homicida. Como escrever algo sobre a mulher com tanto sangue nas ruas e nas casas? Como é possível nos contentar com leituras fundamentalistas das Sagradas Escrituras, fora do contexto em que foram escritos versículos, pinçados conforme interesses machistas e políticos? 2z1m4s
Desde 1908, o mundo presencia mulheres marchando no mês de março gritando por igualdade de direitos e oportunidade entre os gêneros. O mês internacional da mulher, somente oficializado pela ONU em 1975, nos coloca de frente no combate das desigualdades e discriminação de gênero, violência e abusos. As primeiras marchas das mulheres em Nova York pediam melhores condições de trabalho, salários igualitários e busca por direito ao voto. Estavam pedindo muito?
O Papa João XXIII na Encíclica Pacem in Terris dizia que o reconhecimento da dignidade, pretendido pelas mulheres, era um “sinal dos tempos com o qual os que creem, e, portanto, a Igreja, devia absolutamente dar atenção”. Paulo VI em um de seus discursos dizia: “Ouvem-se as vozes longínquas às quais mais cedo ou mais tarde teremos que dar atenção: são as vozes de mulheres”.
Vejamos alguns pontos do Magistério da Igreja que tratam da dignidade da mulher. A Mensagem Final do Concílio Vaticano II parece apontar para um horizonte utópico, quando vemos tantos feminicídios em nosso redor. Diz o Concílio: “Mas a hora vem, a hora chegou, em que a vocação da mulher se realiza em plenitude, a hora em que a mulher adquire no mundo uma influência, um alcance, um poder, jamais alcançados até agora. Por isso, no momento em que a humanidade conhece uma mudança tão profunda, as mulheres iluminadas do espírito do Evangelho tanto podem ajudar para que a humanidade não decaia”.
O Papa João Paulo II publicou a Carta Apostólica Mulieris Dignitatem em 1988, destacando que a Sagrada Escritura apresenta um Deus que cria os dois como seres humanos, em grau igual o homem e a mulher, ambos criados à sua imagem e semelhança. O Magistério da Igreja, nesta Carta, apresenta uma visão de unidade dos dois, homem e mulher, chamados desde o início, não só a existir um ao lado do outro ou juntos, mas também a existir reciprocamente um para o outro. E não um sendo auxiliar do outro.
O Cardeal J. Ratzinger escreveu uma Carta aos Bispos em 2004 quando era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé alertando para duas tendências presentes no mundo atual. Uma que sublinha fortemente a condição de subordinação da mulher ao homem e outra que anula toda e qualquer diferença. Ele nos diz que nenhuma destas posições expressa o pensamento do Magistério da Igreja. A mulher é um outro “eu” na comum humanidade. Desde o início homem e mulher aparecem como “unidade de dois”, que significa a superação da solidão originária. A mulher aparece nos textos bíblicos como a companheira da vida, com a qual o homem pode unir-se como se une com a esposa, tornando-se com ela “uma só carne” e abandonando, por isso, o “seu pai e sua mãe”.
O Papa Francisco na Exortação Apostólica Evengelium Gaudium escreve: “As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres tem a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não podem iludir superficialmente”. Que questões seriam estas?
No Sínodo dos Bispos, concluído em outubro do ano ado, as mulheres participaram com direito ao voto pela primeira vez. Na conclusão, o Papa Francisco disse que “não há razões que impeçam as mulheres de assumirem papéis de liderança na Igreja”. O Sínodo reafirma a “igual dignidade e corresponsabilidade entre homens e mulheres na Igreja” e propõe a “inclusão de mulheres, leigos e jovens nos processos decisórios da vida da Igreja”.
Não se pode viver sob o domínio do medo. É preciso identificar os medos e receios que estão por trás de certas posições, homilias proferidas nas celebrações, porque “esses medos na Igreja levaram a atitudes de ignorância e desprezo em relação às mulheres”. Tantas vezes posturas conservadoras, machistas, herdadas da cultura em geral, exerceram e ainda exercem dominação e se apresentam como desafios culturais e estruturais. Não podem se constituir em “doutrina” como alguns desejam.
Nesse tempo de Quaresma, propício à revisão de vida e da caminhada da Igreja, podemos iniciar novos processos que tenham impacto na sociedade. A dignidade precisa ser reconhecida concretamente. É preciso identificar para curar e para discernir.
Queremos concluir com um pensamento do Papa Francisco: “A Igreja é mulher, é mãe. E isso é belo. Pois, as mulheres não apenas geram vida, mas também nos transmitem a capacidade de ver além, de sentir as coisas com um coração mais criativo, mais paciente, mais terno. A mulher é a harmonia, a poesia, a beleza. Sem ela, o mundo não seria tão belo, não seria harmônico. Onde as mulheres são marginalizadas, o mundo se torna estéril”. Onde as mulheres são assassinadas a cada dia os cristãos serão cobrados no juízo final. Deus nos perguntará: O que vocês fizeram? Calaram-se? Esconderam-se? Apoiaram? Também a omissão é pecado.
Edebrande Cavalieri